Nossa Senhora da Paz?
“Um povo entra em colapso quando confunde
seu dever com o conceito de dever. Nada
arruína mais profundamente, mais intimamente, do que o dever impessoal, ao
sacrifício do Deus Moloch da abstração...” (Nietzsche)
Liza Reis
dos Santos*
Hoje, pela manhã, fui à praça
Nossa Senhora da Paz. De Paz, naquele momento, nada havia. Só se fosse a do
Prefeito, Eduardo, com outras letras, ou a do governador, que faz jus ao
sobrenome de colonizador e carrega a paz na ponta da metralhadora. Fui levar
meu querido cão à praça dele. Sim, essa é a sua pracinha! Na sua exclusiva e
animalesca intensidade, a praça é dele!
Pois bem, ao adentrarmos a
pracinha, tão chegada aos nossos corações, essa vasta praça tinha se retraído,
tornara-se pequenina. Grande parte dela estava interditada, por paredes
contínuas de tapume azul: o blue da tristeza dos desterrados africanos, o blue
do PMDB 2016. A
sequência de tapumes era banguela, havia uma lacuna, ocupada pelo
guarda-topeira-tapume que permitia a visão daquele espaço antes tão favorável à
sociabilidade.
Meu cão beirou os tapumes,
cheirando-os. Levantou a pata. Lançou um longo jato de xixi direto no azul. Em
circunstâncias favoráveis à criação, amarelo e azul dá verde. Ali, não dava
nada. Ao contrário. Só a derrubada de árvores antiqüíssimas de troncos
vigorosos e arbustos frondosos que tão bem acolhem, com suas estendidas
sombras, aqueles que lá vão para conversar, jogar bocha, damas, passear com o
cão, se exercitar, descansar e aproximar do seu habitat natural os passarinhos
que vivem nas gaiolas. Persistente, Chico, meu cão, continuou seguindo os
tapumes em busca da sua praça. A procura o deixava cada vez mais agitado,
descontrolado, até que se viu fora dela. Era para lá que levavam os tapumes,
para fora da praça!
A praça se tornaria então, no
projeto do PMDB, um local de passagem,
um fora. E só: meu cão e eu
levamos um fora! E, também, as 25.000 assinaturas do abaixo-assinado que não
deseja a construção do metrô na Nossa Senhora da Paz.
Fora é também chamado de passa-fora,
aquilo que os autoritários fazem com aqueles que consideram indesejados. Com
uma determinação de cão, Chico insistiu em retornar à praça. Dissuadi-o pela
força, quase a mesma que me projetou para fora dela. Acho que por questão de
estratégia_quiçá o nome que minha vaidade colocou no lugar da covardia. O fato
é que o cão, certamente, não sairia dali. Ficaria, naquele instante, para
sempre, raivoso, sem fome nem sede, até que a ordem fosse restabelecida. Até
que seu xixi fedesse mais do que o da corja arbitrária.
No entorno da praça, a feira.
Agora fora do cartão postal. Será que as pessoas que vão sair dali pelo buraco
do metrô comprarão um verdurinha na feira? Ah, certamente isso é um problema
menor, tendo em vista o grande empreendimento que é o metrô na praça Nossa
Senhora da Paz! Afinal, toda a cidade que se preze tem um metrô de 500 em 500 m, como New York, Paris e
London, atchim! Ai que frio!
Bem, voltemos ao Chico. Que ele
se ache o dono da praça, tudo bem. Ele tem características apaixonantes e
detestáveis inerentes à sua espécie e à minha
capacidade de educá-lo para a convivência em sociedade. O mais
importante é que a ele não foi concedido o direito de governar. Ele
simplesmente governa, a seu modo, por instinto. E luta a todo instante para
manter seu reino e conquistar outros, desafiando e percebendo-se constantemente
desafiado por determinados cães e homens.
Terrível é o PMDB - atenção, é formado por
homens, ou pelo menos deveria ser – a quem foi concedido o direito de governar
a cidade e o estado, se esquecer disso. Os homens que lá estão, ou ao menos
alguns, claramente o prefeito e o governador, se sentem assim como meu cão, os
donos da Praça! Ignoram 25.000 assinaturas contrárias ao metrô na praça N. S.
da Paz e todas as mobilizações ocorridas em defesa da praça. Bem, se eu ainda
pudesse passear com eles na coleira, seria diferente.
De forma abstrata – atributo que
meu cão não possui porque tem o coração puro – as autoridades dizem que fazem
isso em nome do bem-estar da população. Que população é essa? Eu a desconheço?
Deixo a pergunta, pois a que tem se manifestado sobre o metrô na N. S. da Paz é
contrária, e são essas pessoas que eu vejo envolvidas no tema, produzindo
panelaços, intervenções criativas na praça, entrando com recursos judiciais e,
um abaixo-assinado, volto a dizer, que continua sendo ignorado, de 25.000
assinaturas. Já que falam em nome da população, e essa população é incolor, sem
forma e indolor, não engorda e não faz mal, façam os senhores prefeito e
governador, que tão certeiros falam do bem-estar da população e da cidade do
Rio de Janeiro, um plebiscito sobre o metrô na N. Senhora da Paz. Rio eu apoio!
Chico, Nietzsche e 25.000
assinaturas. Tão próximos e tão distantes do prefeito e do governador. Melhor
dizendo: prefeito e governador, tão distantes de Chico, Nietzsche e 25.000
cidadãos.
Chico decanta no seu xixi que
marca território o pensamento mais potente que o filósofo alemão oferece ao
homem para pensar a si mesmo. Nietzsche, em crítica ao também filósofo alemão
Immanuel Kant, coloca que esse abriu caminho para o retorno de um antigo ideal,
bastante perverso, baseado no conceito de “mundo verdadeiro”, e na noção de
moral como essência do mundo. Essas
idéias, acordando com Nietzsche, fizeram “da realidade uma ‘aparência:
transformara-se em realidade um mundo completamente inventado, o da essência”.
Vejo uma associação entre o que diz Nietzsche e as ideias de lideranças do PMDB
carioca. Ao ignorar o posicionamento do único grupo da sociedade civil
preocupado em se organizar para discutir e se mobilizar frente à questão do
metro na praça, os governantes estão em vias de transformar “em realidade, um
mundo completamente inventado, o da essência”. A essência, no caso, pode ser
associada à visão do metrô na praça como trazendo bem-estar para o carioca e
progresso para a cidade. As idéias de bem-estar e progresso são essencialistas
na medida em que não são problematizadas pelos governantes, são tratadas como
se houvesse uma concepção única sobre cada uma das duas, ou seja, como se as
idéias de bem-estar e progresso fossem compartilhadas por todos em um único
sentido, com um fim em si mesmo. É nessa medida também, que são abstratas, já
que se propõem a uma validade universal, ou seja, a existirem sob uma única
perspectiva, válidas, portanto, para qualquer um, em qualquer lugar.
Curioso que o governador e o
prefeito do Rio de Janeiro, justificando a construção do metrô na Nossa Senhora
da Paz como se fosse o melhor para todos, como consenso ou interesse da maior
parte da população – silenciosa –, levam-me a supor, ao contrário do
comprometimento aparente com a população expresso na sua justificativa, que as
motivações que dão forma a essa ação pública são de interesse estritamente
individuais, relacionados à visão de mundo específica e compactuada de cada um
deles. Isso porque quem se manifestou, o fez contrariamente e, foi tido pelos representantes
eleitos em questão, como opositores a um bom projeto. Sendo assim, pode-se até
mesmo concluir que eles projetam seus interesses individuais em interesses
coletivos, utilizando-se do artifício de idéias abstratas e essencialistas, que
estão em vias de transformar a “realidade em um mundo inventado, o da
essência”, com a implementação do metrô na Praça da Paz.
Como seres humanos, os atuais
prefeito e governador não entrariam no hall da Décadence, afinal agem motivados por “uma necessidade interior,
profundamente pessoal”. Porém, na condição de representantes do povo, se
mostram como Yuppies, brincando de
democracia.
Torna-se oportuno, em função
também desse acontecimento, colocarmos em questão a representatividade da
Democracia e passarmos a discutir com seriedade a inserção de instrumentos da
Democracia Direta/ Participativa no atual modelo, a fim de que seja garantida a
Democracia enquanto “governo do povo”, conforme sugere o sentido estrito da
palavra. Quando democracia e cidadania passam, de fato, a se complementarem,
direitos conquistados ao longo do tempo pelos excluídos ou marginalizados por
algum centro dominante - e me refiro aqui, sobretudo, aos direitos políticos -
fica possível, parodiando o filósofo, retirar a realidade da ‘aparência’.
* Liza Franco Busse Reis dos Santos é
cientista social. Colaborou no texto Maria Luiza Franco Busse, jornalista e
semióloga.